09 September 2009

a encomenda mentirosa

Sentado à beira do autocarro, esperava pela próxima paragem, junto à Rua da Amargura. Na loja Tristitia, bem junto à esquina com a Avenida Júbilo Esperança, uma encomenda, com um nome, esperava por mim. Ela não podia viajar sozinha. Ainda era nova, demais. Embora a cidade de duzentos e trinta e quatro habitantes rebentasse pelas costuras em plena hora de calor, ela não podia andar por aí sozinha.
Então, lá ia eu, olhando os postes a passar e a não parar.
...
De facto, até lá não queria ir. Buscar a encomenda. Tampouco sabia o que aquilo era. Simplesmente um pacote neutro de côr uniforme, apenas com um único nome no canto superior direito, em substituição de qualquer selo ou carimbo. Mais nada, nem um simples risco. Simplesmente: "ele"!
O cheiro a petróleo esvaziava a carteira rasgada daquele que subia, não sem dificuldade, os três degraus do pobre autocarro. Que era o que tinha menos culpa de estar naquele decrépito estado.
E eu sem querer lá ir, lá ía.
Mas porque é que o homem não foi lá, já que a encomenda nem era para ele? Porque é que me obrigou a mim, a ir, que nem tinha nada para fazer? A ir lá, buscar a encomenda que seria para mim, ou pelo menos para "ele", eu?
Odeio estas coisas, de ter que fazer o que outro podia fazer por mim, mesmo que seja para mim. Porque é que não se arranja um sistema em que outros possam fazer o meu trabalho, tentando assim que um mundo mais claro e mais justo surja por cima deste, tapando-o, fechando-o, como se nunca houvera um outro?
...
Finalmente o autocarro fingiu que chegara e eu tive que pular. Entrei na loja e esta emanava um sabor a canela, humedecida pelos queixumes dos clientes que não compram nada e somente inundam o ar de bacterias e enchem o vidro do balcão de dedadas. Como se fosse para marcar a sua presença. Eu já fui cliente daquela loja. Ainda não morreu e já lhe fazem o funeral.
Dirigi-me à encomenda, de côr uniforme, e após as primeiras apresentações, peguei nela. Era leve e rectangular. Pensara que seria quadrada. Peguei nela e sai. E nunca a abri, por não saber se era para mim, efectivamente, ou se era para ele - mesmo sabendo que "ele", era eu, nunca tive a certeza desta minha dubiedade.
E nunca a abri. Nunca cheguei a saber se lá dentro estava o que pedira, já que era para mim. A encomenda.

.