24 January 2012

“The office” um pouco por todo o lado

A cara de parvo do Mackenzie Crook assentava que nem uma luva naquela figura de empregado esbranquiçado, tipo ar condicionado, do The Office (a que mais tarde seria acrescentado o "UK"). Aquele aspecto escanzelado devia-se mais a um tiro na mouche do realizador ou seriam ainda sinais perdidos da terapia hormonal, quando novo? De qualquer forma, aquele personagem seduzia-me e eu ficava ansioso pela sua aparição. Óbviamente que a de Ricky Gervais (também o co-autor da série) era, do mesmo modo, bastante deliciosa, o que permitia aquele deleite esmagador de "porra, não falta mais nada".
Talvez devido a essa sensação, a esse momento de emoção – em cada um daqueles vinte minutos -, eu ficara expectante aquando do anúncio da versão norte-americana. E lá estive, à espera que a NBC colocasse aquilo no ar. A escolha perfeita de Steve Carrell – um dos Frat Pack - para substituir o gerente de papel da versão britânica (e pensar que Paul Giamatti declinara o convite do produtor, ah?) deixava antever boas escolhas de casting. E foram, estando Rainn Wilson, com aquele egocêntrico "Dwight Schrute", como a cereja em cima do bolo.
A ideia de retirar a plateia das gravações ou de não colocar inserts de risos gravados, usando uma única câmara (bem como a de enviar o cenário para uma cidade pouco maior que Évora, onde se situava a sucursal de uma empresa de distribuição de papel), serviria para dar força ao mockumentário.
Esta série, que tem saltado criativamente tipo coelho de país para país, de versão para versão (Reino Unido, França, Estados Unidos, Brasil, Suécia, Chile, Israel, Canadá ou Alemanha – esta última menos oficial) ganhou um lugar de destaque na minha estante com caixas de dvd´s, naquele cantinho do meu museu imaginário.

Um destes dias, o Zé Rui veio à minha casa – estava eu a jogar "Portal 2" (com a voz de Stephen Merchant – o outro co-autor da série) -  e perguntou-me, enquanto repetia um hábido costumeiro (o de passar o dedo pelos dvd´s como se fosse escolher o seu favorito): "olha lá, tu tens espreitado as notícias sobre esta cena da crise, né?". O meu silêncio era um misto de concentração no jogo e de um óbvio "claro que sim, quem é que se consegue abster dessa inundação informativa?".
O Zé Rui, agora fingindo que tomava atenção às capas dos filmes, dizia: "Esta cena da crise é uma treta. Cá para mim, nunca existiu crise. É uma invenção de alguém. Há os sobe e desce do poder capitalista, não é? Dás muito, tipo guloseima, e depois retiras a cenoura, senão era sempre a crescer desmesuradamente. E isso não dá. Entretanto estás com dívidas até ao tecto (pediste empréstimos para a casa, o carro, os sete ou oito créditos pessoais – para a nova impressora, para as férias de verão e também a de natal, para o novo iphone, o ipad e o i-que-já-tou-lixado) e não te podes mexer! Estás nas mãos deles.
Mas eu acho que essa história da crise nunca existiu. A ideia é retirar coisas que tínhamos como garantidas (como na saúde, na educação, na segurança social.. nas reformas... reduzir custos...) usando a desculpa da crise e do temporário. Dar um rebuçado, manter o interesse, mas sempre com controle. Sem esticar demais, nem retirar tudo. Quanto a essas garantias que se tinha, a intenção é manter isto assim mais tarde, mesmo depois de tudo isto (desta coisa inventada) passar. Aliás, esses tipos estiveram sempre à espera... deixa-os pousar. E paciência têm eles. Quer dizer, muitas destas coisas até íam tentando que fossem alteradas mas nunca conseguiam, mas agora com a desculpa da crise lá conseguem. E não é que vão lixar isto tudo? E fazem à descarada, sem artimanhas. Dizem uma coisa, fazem outra, voltam a prometer o que não cumprem e afirmam que sempre disseram o contrário. Com um descaramento sem limites."
Eu pensava no Steve Carrell e naquele toque genial de ridicularizar tudo em que toca. Achava que o Zé Rui tinha razão, contudo aquela realidade que ele descrevia era mórbida demais para pensar nela a sério. Toda aquela gigante equipa ministerial (com os outros amiguinhos, e ainda os outros das empresas, mais os das irmandades e os das nomeações) dava um resultado risível e indefinido que ficava a meio caminho entre os Rat Pack (com cenas de um filme antigo, fechados numa caixa pretensiosamente jazzy mas com cheiro a mofo) e os Frat Pack (com um suposto relaxamento rock que soa a falso e mentiroso por todos os lados).
O Zé Rui ficou a olhar para mim, mas como não lhe respondia, decidiu baixar-se e pegar no outro comando para jogar comigo: "Olha lá, não preferes jogar Grand Theft Auto IV? Também tem a voz do Ricky Gervais".

Post-scriptum: sei, de fonte segura, que eles vêm aí. É certo que vêm e é em meados de Fevereiro.

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FACTOR MEDO: O MEU MUSEU IMAGINÁRIO
Miguel de Matos Valério
inscrito no projecto "Guerras/Crises" (guerrascrises.blogspot.com)

(publicado no Seminário Registo de 19.01.2012)